No quinto episódio da série Pedal Noturno, trocamos o brilho urbano pelas estrelas do céu mais limpo do planeta: o Deserto de Atacama, no norte do Chile. A região, conhecida por sua aridez e beleza surreal, foi o cenário escolhido para uma jornada íntima e desafiadora. Mais do que uma trilha técnica, esse pedal representou uma travessia emocional.
Pablo e Marina, ciclistas experientes e guias em trilhas noturnas, decidiram sair da rotina profissional para encarar esse desafio sozinhos. Era uma experiência a dois — sem cronômetro, sem clientes, apenas eles, as bicicletas e o deserto. Mas havia um detalhe que só Pablo sabia: ao final da trilha, ele faria o pedido de casamento que vinha planejando há meses.
A pedalada noturna foi traçada com precisão, unindo técnica e sentimento. Do Valle de la Luna ao Salar de Tara, enfrentaram subidas técnicas, trechos arenosos, altitude e um frio cortante que testou os limites físicos e emocionais. Um episódio que prova que o amor também é uma aventura — e que às vezes, ele se revela onde o mundo parece mais inóspito.
Detalhamento Técnico da Trilha
Distância total: 35 km
Duração do percurso: Aproximadamente 4 horas e 30 minutos (com pausas para hidratação e contemplação)
Altitude média: 2.500 a 3.200 metros
Terreno predominante: Mistura de trilhas de areia fofa, sal cristalizado, cascalho e pedra vulcânica.
Temperatura durante a pedalada: entre 5 °C e -2 °C
Iluminação: Natural (lua cheia) + faróis LED de 1200 lúmens acoplados ao capacete e ao guidão
Equipamentos especiais:
- Bikes gravel com relação de marcha otimizada para subida (coroa 40T, cassete 11-46)
- Pneus 700x50c com padrão semi-slick, ideal para cascalho e areia leve
- Mochilas de hidratação com 2L de água + eletrólitos
- Roupas térmicas em camadas, corta-vento com isolamento térmico, luvas específicas para frio seco
- GPS com track pré-carregada e pontos de referência marcados manualmente
Riscos enfrentados:
- Desorientação devido à paisagem homogênea
- Cansaço acentuado pela altitude
- Hipotermia em caso de parada longa
- Dificuldade de tração em trechos com areia solta e sal cristalizado
Ponto de maior dificuldade: Travessia do trecho final do Salar de Tara, com terreno instável e grande variação de temperatura em curto período.
Preparativos: Planejamento Meticuloso para um Deserto Inesquecível
Mesmo sendo ciclistas experientes, Pablo e Marina sabiam que uma trilha no Deserto de Atacama exigia mais do que habilidade. Enfrentar o clima seco, o terreno variado e a altitude tornava qualquer improviso um risco real. Por isso, a preparação começou semanas antes, com análise de mapas topográficos, estudos de clima e simulações noturnas em altitudes semelhantes.
Para garantir segurança e autonomia, o casal escolheu bicicletas gravel com ajustes específicos para esse tipo de percurso. A calibragem dos pneus foi cuidadosamente testada para lidar com o solo alternando entre areia fofa e cascalho denso. Além disso, criaram um cronograma rigoroso de alimentação e hidratação para evitar desidratação — um risco silencioso no clima seco do Atacama.
Também incluíram pontos de referência estratégicos via GPS: três pontos de parada obrigatória, incluindo o Mirador Kari, um trecho entre formações rochosas no Vale da Morte, e o Salar de Tara. Cada um desses trechos representava uma mudança no tipo de terreno e exigia adaptações no ritmo de pedalada e atenção redobrada à visibilidade.
O Início da Trilha: Silêncio, Pó e a Lua como Guia
A trilha começou pouco antes das 21h, quando a temperatura já havia despencado para cerca de 6 °C. A lua cheia iluminava as formações rochosas do Valle de la Luna com um brilho prateado surreal. A primeira etapa, com 4,5 km de subida até o Mirador Kari, foi marcada por um esforço técnico intenso. O terreno apresentava inclinações de até 9% e muitas pedras soltas, exigindo tração constante e controle preciso da cadência.
Pablo manteve-se na dianteira, guiando com foco e segurança, enquanto Marina aproveitava os primeiros momentos para se conectar com o ambiente. Os dois usavam comunicadores embutidos nos capacetes para manter o contato, principalmente nas curvas mais fechadas e nos trechos com visibilidade reduzida por formações rochosas.
Ao chegarem ao topo do mirante, o primeiro ponto de pausa planejada, fizeram uma breve parada de 10 minutos para hidratação e ingestão de alimentos leves — barrinhas com carboidratos de absorção lenta e sais minerais. Apesar do frio, Marina já sentia o corpo aquecido pelo esforço e pela emoção de estar ali, sozinha com Pablo, num dos lugares mais fascinantes do mundo.
Meio da Trilha: Técnica, Desgaste e Magia no Salar
A segunda etapa foi a mais silenciosa e contemplativa. Os 12 km que atravessavam os vales de sal e areia exigiam atenção constante. O pedal alternava entre seções lisas e outros trechos com sal cristalizado e rachado, onde a tração era imprevisível. O ruído dos pneus sobre o sal gerava um som metálico e hipnotizante, quebrado apenas por pequenos ajustes de marcha.
Foi nesse trecho que a altitude começou a cobrar um preço: mesmo com condicionamento, a oxigenação mais baixa forçava respirações profundas e um ritmo mais moderado. A temperatura caiu para 3 °C e o vento começou a soprar mais firme, fazendo com que as paradas fossem evitadas ao máximo.
Ainda assim, o ambiente era de pura magia. O céu, completamente limpo, exibia uma tapeçaria de estrelas com uma clareza quase sobrenatural. Ao longe, as sombras das montanhas contrastavam com o branco dos salares. Pablo sentia o anel no bolso da jaqueta. A ansiedade aumentava conforme o destino final se aproximava.
O Desfecho: Um Pedido na Solidão Cósmica do Deserto
O último trecho até o Salar de Tara foi o mais exigente — tanto fisicamente quanto emocionalmente. Os últimos 7 km envolviam uma leve subida, mas com trechos de areia solta e solo vulcânico fragmentado. O casal teve que alternar entre pedalar em baixa rotação e, em certos pontos, empurrar as bicicletas para evitar quedas.
Chegaram ao mirante às 01h20, após mais de quatro horas de pedal. Com a lua refletindo nas formações rochosas do salar e uma brisa gélida cortando o ar, Pablo parou, olhou para Marina e disse: “Espera só um segundo, preciso ajustar minha lanterna.” Em vez disso, tirou do bolso a pequena caixa.
O pedido foi simples, direto, mas repleto de sentimento. Marina chorou, sorriu, tirou as luvas com pressa para pegar o anel e disse “sim” enquanto o céu os envolvia com sua imensidão silenciosa. O deserto, aparentemente vazio, parecia agora cheio de significado.
Quando Técnica, Paixão e Coragem se Encontram no Horizonte
A jornada de Pablo e Marina pelo Deserto do Atacama é um exemplo raro de como é possível unir precisão técnica com emoção autêntica — e de como o ciclismo, mais do que um esporte, pode ser um cenário para grandes transformações pessoais. Cada quilômetro pedalado naquela noite exigiu conhecimento, preparo físico e domínio total dos equipamentos. Mas também exigiu coragem para sair do previsível e transformar uma trilha profissional em um momento profundamente íntimo.
Essa ousadia de misturar o universo profissional — com toda sua estrutura, técnica e responsabilidade — com a dimensão pessoal e afetiva mostra que viver a aventura por inteiro pode significar romper fronteiras internas também. Pablo não apenas planejou uma trilha segura e tecnicamente exigente: ele transformou essa experiência em uma metáfora sobre parceria, confiança e superação conjunta.
No fim, o que Pedal Noturno entrega nesse episódio vai muito além de dados técnicos e belas paisagens. Ele nos lembra que, por mais que o terreno seja desafiador e o ambiente inóspito, é possível criar espaço para o inesperado — para o humano — mesmo no pedal mais bem planejado. E talvez essa seja a maior lição que uma trilha pode nos oferecer: a de que, com preparo e paixão, podemos conquistar muito mais do que um destino. Podemos conquistar uma nova forma de viver.
E fica a lição para todos os ciclistas: com planejamento, respeito à natureza e uma dose de coragem, é possível viver momentos que nenhum Strava consegue registrar. Porque às vezes, a aventura mais marcante é aquela que nos leva não só por novos caminhos, mas também mais perto de quem a gente ama.